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Cristiano Bento de Lima

crisbl2003@hotmail.com

Como é bom ser "café com leite"

Como é bom ser

Hoje, por um acaso ouvi um trecho da música do grupo “O Rappa”, onde se seguia: “Faltou luz mas era dia, o sol invadiu a sala”, e me veio um choque de realidade, me fazendo perceber o quanto nos tornamos reféns dos aparelhos eletrônicos, até mesmo as crianças que outrora viam o sol nascer e se pôr, brincando pelas ruas de nossa cidade, muitas vezes descalças, sem blusa, correndo, pulando e rindo sob esse mesmo sol que hoje os meninos só se dão conta quando falta a luz elétrica, deixando no obscuro seu Wi-Fi e seus “App.”, enquanto para nós não tinha tempo ruim.

Sei que não é apenas para mim a sensação de que a molecada de hoje já nasce fissurada em tecnologia, quando no meu tempo de moleque sequer existiam tantos aparatos de alta ciência. Brincávamos com as coisas mais bizarras que se pode imaginar: latas de leite que se transformavam em carros puxados por um punho de rede, pneus velhos junto a um pedaço de madeira ganhavam a forma de veículos de controle remoto, não podíamos ver uma sacola ao lado de um boneco que esse já se transformava em paraquedista.

E seguia-se: palitos de picolé, palhas de coqueiro, tampinhas de garrafa, ligas, balões, restos de câmaras de ar das bicicletas, pedaços de madeira e rolamentos, praticamente tudo se transformava em diversão e exercícios, sem contar os clássicos – pião, bola, pipa, estilingue, bila... 

O cenário que sempre me vem à cabeça nesses momentos são as noites na esquina da minha rua, onde tínhamos uma trave desenhada com riscos de tijolos na parede de um galpão que já veio a desmoronar, paralelepípedos que serviam de banco para trocarmos as boas ideias, bicicletas escoradas em seus descansos (macacos), chinelos rigorosamente enfileirados, outros servindo de traves e muita, muita terra e poeira. 

Nesse cenário se reunia a turma inteira: crianças desnudas, jovens desocupados, outros a tramar planos mirabolantes para demorar um pouco mais naquele lugar sem que a mãe gritasse de longe chamando-os para casa, todas as faixas etárias eram bem vindas, mas os “grandes” é quem mandava, era uma espécie de código ou lei.

Tudo quanto era jogo acontecia ali, 7 pecados, cemitério (queimada), bandeira, 31, futebol, pião, até pipa se soltava a noite. Todavia tinha um que era muito disputado entre os “grandes”, o famoso jogo de bila. Expressões como: “deu palmo?!, Tudo por dois, fonô, estica! Miou!” eram muito comuns todas as noites.

Eu acompanhava tudo, pois tinha para mim uma grande inspiração que era meu irmão, cabra ponteiro, certeiro, se enchia de bilas todas as noites, mas nunca compartilhava comigo e eu não podia participar por alguns motivos, como: eu era café com leite e lá era jogo de grandes, sendo assim eu nem ousava, ou mesmo, não tinha bilas suficientes para entrar naquelas disputas que meu irmão sempre se dava bem, e até, eu nunca fui bom de mira, o desastre seria certo. Mas o primeiro motivo me dava uma boa vantagem, eu era café com leite, e de certa forma era muito bom ser café com leite.

Certo dia consegui 0,20 centavos e corri no comércio do bairro vizinho para comprar bilas, queria jogar, ser ponteiro igual meu irmão. Comprei 6 bilas e corri para a velha esquina. Pensava eu: “sou café com leite, não vou perder”, o grande problema é que não existia café com leite entre eles, resultado final, perdi minhas 6 bilas e de quebra abri aquele berreiro em choro.

Os grandes não estavam nem aí, meu irmão muito menos.

Corri para casa para reclamar com a mãe, ela teria com certeza a solução. De longe mesmo ela soltou o grito “Ele é pequeno, é café com leite, devolve já!”.

Que alívio, os grandes tiveram que devolver minhas preciosas bilas, pois havia uma espécie de corte marcial que eu esqueci de dizer, as mães. Elas é que tinham a maior autoridade, inclusive de acabar com os rachas, jogos, brincadeiras, devolver os brinquedos perdidos e até mesmo de colocar os grandes mandões para dentro e encerrar aquela noite, pelo menos até a noite seguinte.

Hoje, na maioridade, cheio de responsabilidades, compromissos e correrias tudo que queria era voltar a ser café com leite, nem que fosse pelo menos de vez em quando, como era bom!